"Cara companheira, sei que em cinco dias, faremos cinquenta anos de casados e que queres que te dê algo certo e que te complemente a cintura concôva, que te faz tão cerrada, mas tenho de afirmar com certeza que estás carente de elogios.
Fui então às compras para ver se comprava algo caro e carinhoso, mas não comprei lá grande coisa. As decisões e escolhas eram complicadas: és alérgica a cabedal, portanto não há casacos, odeias caxemira, portanto camisas estão fora de questão, cachecóis não comprei porque concretamente, cheia deles estás tu. Estava a chover, podia ser que quissesse um chapéu de chuva, mas depois concluí que a chuva passa, o carinho não. Cheguei também à conclusão que se calhar, o que mais querias, não era algo concreto, mas sim o afecto de uma ceia bem passada, uma cama bem lavada, um cantinho bem escondido, um cuidado bem querido. Passou-me a ideia de ser canalha e usar a condição precária da idade como desculpa para ser ordinário. Algo como dar-te c****** se me desses c***, mas o meu conhecimento diz-me que já não cais nessa cantiga como antes. Decidi por fim, cantar-te uma canção, vinda do centro do meu coração, relembrando assim os conturbados tempos de infância quando ouvíamos o Monstro das Bolachas cantar o "C is for Cookie" enquanto te roubava a chucha e te deixava chorosa a comer Chocapic. Lembro-me o quão contente me deixava o cheiro do chocolate misturado com o teu choro. Era um pequeno c*****, eu sei, mas eu cresci. Aliás, ambos crescemos, eu tornei-me curvado, consciente e carente, tu cresceste para ser cuidadosa, comilona e chata. Mas mesmo com esses cem quilinhos a mais, completamo-nos. Meia centena de anos não é para todos, nem mesmo a centena que nos aproximamos de concluir juntos, mas não conseguimos como campeões.
A canção então é simples, para complicada chegas-me tu. Hmm... esqueci-me da letra. Sabes que o meu cérebro já não é o cavalo de corrida de antigamente. Lembras-te na faculdade, quando chegaste atrasada naquele dia chuvoso e eu te aqueci as curvas com o meu corpo? Nunca me esquecerei das tuas palavras: "Isso é o teu cinto ou estás contente por me ver?" Já na altura eras arisca, mas decidi não arriscar então comprometi-me a esperar pela melhor chance. Chance essa que só viria cinco meses depois, no jantar de curso. Comecei então a cortejar-te como se te conhecesse a vida inteira. Sim, eu sei que nos conhecemos em crianças, mas houve alturas em que se criou uma nuvem negra sobre as nossas cabeças e começámo-nos a afastar aos poucos e poucos. Felizmente, tudo correu bem na conclusão da história e acabaste por aceitar o meu pedido debaixo de chuva torrencial. Se não fosse a minha capa e o teu chapéu, tinhamos apanhado constipação na certa. Com tudo isto, já são cinco e meia e deves estar a chegar com as compras. Teimas em ir sozinha porque confias demasiado nas tuas capacidades. Já foram melhores, temos sido cada vez menos capazes de fazer alguma coisa com a idade. Preocupo-me mais com a tua condução. As tuas cataratas deixam-te quase cega, mas tu teimas que consegues. Temo por ti, sinto-o no meu coração. Porque podemos ter dito muitas coisas, feito muitas coisas mais, mas o que mais me corrói de medo é saber que todos os nossos dias fulcrais foram sobre chuva cerrada como está hoje. Não quero que hoje seja lembrado, certamente pelas piores razões. Cuidado, querida, e volta cedo."
Autoria de Daniel Ferreira
P.S.: 203 C's num só texto. É dose.
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Fogo, Dany! Esmeraste.te.
ReplyDeleteNão sou muito de comentários e estou mesmo sem palavras.
Amei! *
Filhitoooo
ReplyDeleteMas que texto bonito... Ta bem feito sim senhora :D
Ultrapassas-te as espectativas :P LOl
Gostei!! ;)
BJinhos***
Fonix 203 C's... Tu és o meu herói =P e ainda diz ele que não tem jeito para escrever, deixa-me rir. Deixas? Então vá vou rir, LOOOL XD
ReplyDeleteMuito bom mesmo =P abraço [][][]